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Fenix

Em 2019 apresentei o texto abaixo em um encontro da Ariele no Brasil. Ele faz parte de um conjunto de narrativas apresentadas junto com Carla Vergara dentro de um trabalho que nomeamos de Poética do Cotidiano. Hoje, 1 de fevereiro, ao completar 6 anos de um grave acidente de carro, compartilho novamente esta poética que nos forma e cura.

Fenix

A gente habita o olho do furacão e não se dá conta. Vive como se estivesse desfilando em passarelas. Até que, um dia, o dragão te lambe com suas labaredas e você queima e se reduz a cinzas. Então, talvez, a partir dali algo inédito possa acontecer.

Se você tiver sorte, como foi meu caso, você renasce das cinzas e, este momento, por mais doloroso que seja, é também incrivelmente especial. Você reaprende as leis que regem tua biologia, as revisita novamente como se fosse a primeira vez, talvez melhor que a primeira vez. Esse presente que é sentir a pulsação da vida me foi concedido nos meses que seguiram ao acidente de carro. Eu galopei na natureza da luta pela vida. Pude sentir cada momento desta imposição de vida. Ela pode ser feroz, assustadora e magica. Nasce das tuas entranhas e pulsa enquanto as maquinas apitam. Ela faz teu corpo se retorcer e se reinventar enquanto a UTI o apresenta na imobilidade.

E, se você sobreviver apesar das inúmeras fraturas pelo corpo, das costelas esmigalhadas, da bacia arrebentada, dos dedos amputados, você tem a oportunidade de fazer de novo seu percurso de vida. Falo de um percurso essencial: respirar, urinar, defecar, desmamar, comer. E, depois de alguns meses: se arrastar pelo chão, engatinhar, andar. Esses verbos carregam a dimensão da vida. E ali, no meio de todos os seus ossos que trabalham para se colar, existe uma beleza especial. Uma beleza negligenciada, perdida, apagada pelo fascínio das promessas que o mundo te faz: seja inteligente, astuto, eficiente, educado, culto e o que mais for necessário para te distrair de você mesmo. Esta beleza esquecida te invade quando você sente a água escorrer pelo teu corpo no primeiro banho após meses de restrição á cama do hospital ou quando você sente a brisa roçar tua pele ao se colocar novamente a céu aberto depois de muito tempo fechada entre 4 paredes. Estes acontecimentos sutis podem ser sinônimo de estado de graça e você se sente novamente alinhado com a existência. E, durante algum tempo, você vive o milagre de perceber as camadas de vida que pulsam nos pequenos acontecimentos. O contato com a beleza do essencial te faz feliz enquanto teu corpo imóvel aguarda os tempos da natureza. E, o abrir os olhos ao amanhecer, deixa de ser trivial, ele é um pequeno milagre que se repete a cada dia.

Esta fenda em que você agora se encontra, re- significa o presente, as relações, o futuro, o amor: uma percepção que te alimenta. Mas, á medida que você se recupera fisicamente, a rotina se coloca novamente e pede resposta ás exigências dos seus diversos papeis: a vida mãe, vida profissional e outras te pedem performance. E embora, seja um momento para seguir destinos inusitados através da fenda dos acontecimentos sutis, os papeis colocam suas esporas no teu ego para que você cumpra o que é esperado. E você vê a fenda deste momento de aguçada percepção e clareza se fechando como um mapa de mundo que vai se apagando, com o qual você luta para manter vivo na memória. E esta torna-se uma batalha tão sangrenta quanto aquela da UTI. A batalha para não esquecer, para continuar conectada á magia de abrir os olhos, de sentir a água do banho que escorre pelo corpo e a brisa que roça tua pele. As lembranças dos dias de imobilidade e doença chegam a ser perturbadoras, não por suas dores físicas e emocionais, mas sim por seus momentos de beleza. A beleza pela qual luto para que não se apague no corredor longo e estreito do cotidiano.