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Registros de uma escuta que incendeia

Como nos tornamos porosos? Esta é a pergunta que pousa sobre mim quando penso no que foi escutar e, de alguma forma, participar das narrativas dos profissionais de saúde que atuaram na linha de frente da pandemia. Foram 15 entrevistas que eu e Carla Vergara realizamos entre março e setembro de 2020 a fim de documentar a experiência da pandemia para quem cuida e que está reunida na iniciativa Queremos ouvir tua voz.

São quase 40 anos trabalhando junto com estes profissionais e nunca estivemos tão
porosos como na época da pandemia. A couraça construída ao longo da formação acadêmica se dissolveu. Escorreu em meio as lágrimas.

Após todo esse tempo de convivência, nunca foi tão marcante a pessoa para além do
papel profissional. O evento da pandemia, favoreceu perceber sensibilidades da pele
cuja formação, ato após ato, vai cobrindo com suor, silêncios, distanciamentos e
condutas científicas que justificam o ato médico. A impotência gerada pelo
desconhecimento científico de um novo vírus, puxou o tapete do contexto sobre o qual nós, profissionais de saúde, nos sustentamos prioritariamente: o conhecimento
científico. Foi a partir desta sala vazia que começamos a trocar olhares. Um tatear no desconhecido que nos faz perceber a porosidade da pele.

A pandemia colaborou para horizontalizar nossa relação com os pacientes. Muitos
profissionais viraram pacientes e, quando voltaram à linha de frente, já não eram mais os profissionais que foram um dia. A presença da morte nos ajudou a cuidar de relações e fortalecer laços afetivos. E o luto passou a ser de todos nós em maior ou menor grau.

Vivemos um tempo onde pudemos conjugar de forma próxima as palavras fé e ciência,
espiritualidade e medicina, cuidado e envolvimento emocional.

Uma das palavras que mais escutamos nos depoimentos foi medo. Medo de ficar
doente, medo de transmitir, medo de morrer. Mas esta pandemia também trouxe a
poética deste medo: a devoção com medo. Os que decidiram permanecer na linha de
frente foram fundo em suas jornadas de trabalho, em sua dedicação, em seu cansaço, em seus esforços sem dia nem hora, apesar do medo.

Escuta e acolhimento. Nunca estas palavras disseram tanto. Parecia um ato mínimo,
ligar as câmeras e começar a gravar depoimentos com uma única pergunta de partida: o que você gostaria de contar sobre a tua experiência durante a pandemia? Rastilho de pólvora e fosforo. O que vem depois incendeia.

Esta é a historia da Dra. Isadora, Dra. Karen , Dra. Tania , Dr. Marcelo , Dr. Clovis , Dr.Carlos, Dra. Isabel, Dra. Beatriz, Dr. Pedro, Dr. Thor, e tantas pessoas que não estão nomeadas mas que vivem através destes relatos, olhares e emoções . Que vivem através destas vozes.

As pessoas não apenas vivem suas vidas como também imaginam a vida que vivem e as
histórias expressam essa imaginação. Estas histórias falam de qualidades existenciais para as quais não há uma métrica. Nosso desafio é transformar narrativas de sofrimento em uma jornada de busca para o que está além e, a partir delas, criarmos um território para habitar. Transformar vozes, tempo, espaço, enredos em espessuras de cuidado.

Acredito que isto seja possível através da palavra. A palavra é criadora e instaura novos mundos. Através dela damos a possibilidade que aspectos sútis de nossa existência se manifestem. Por isso atividades que consideram e cuidam das palavras não são atividades ocas. Quando usamos a palavra, do que estamos tratando é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos palavras e coisas, de como nomeamos o que vemos e sentimos, de como vemos e sentimos o que nomeamos.

A crise dos afetos acontece quando somos expulsos desse exercício com a linguagem,
quando não conseguimos experimentar o que é comum nem comunicar o que se passa
conosco. A crise da palavra é a crise do desencontro entre palavra e experiência, crise da comunicação de vivências em espaços comuns, crise da capacidade de inventar novos significados. Por isso, buscar palavras que permitam expressar experiências é de vital importância para cuidarmos e promovermos saúde. Esta é a história de alguns, mas que fala de tantos. Ao escutá-las adentremos um campo de encontro das nossas humanidades.

Esta é a história de uma brecha que se abre no campo da medicina para pensarmos
saúde, um espaço de oportunidade. Honrar este momento é cuidar desta brecha para
aprender e transformar.

Dra. Karen: o elo afetivo que fala do cuidado em pequenos gestos como um café com
bolo, ações simples de carinho que amparam o profissional. Personifica a ajuda mutua, a colaboração para salvar, curar ou apenas estar juntos, uma voz que abre para além da profissional de saúde, integrando angustias, magoas, medos.

Dra. Tania: nos lembra que em nos cabe o choro e o riso, aquela que durante a pandemia elos de ligação que nos permitem escutar uns aos outros, dando voz aos acontecimentos pouco relatados desta pandemia. Que permitiu juntar pessoas para tecer esta história.

Dra. Isadora: expõe os sofrimentos que o exercício da profissão causam ao médico e que pode levá-lo, em algum momento, a questionar a profissão. Apesar disto ela escolheu mergulhar nestas dores, dando espaço a uma escuta ativa destas histórias, se encontrando nelas para lidar com suas próprias dores e criando, através de intervenções artísticas, espaços para que pacientes, familiares e outros profissionais pudessem elaborar situações vividas durante a pandemia. Na junção de medicina e arte ela construiu pontes entre cuidado e sofrimento canalizando-o em afeto e dando sentido a travessia da pandemia.

Dr. Carlos: nos traz a mensagem simbólica desta pandemia: a asfixia social. Uma
hipóxia silenciosa com impactos sociais que se tornaram mais explícitos durante a
pandemia. Nos lembra que a educação epidemiológica pode ser uma forma de transformação social e que a forma como nos inserimos no trabalho evidencia formas de viver e morrer. Resgata dois símbolos importantes da pandemia: mãos e água. Água significando vida e mãos significando visão. Lavar as mãos, um ato inovador em
tempos de pandemia, rompe o automatismo do trabalho e salva vidas.

Dr. Evandro: Evoca o aspectos da humildade necessária à profissão médica e da
igualdade de todos os pacientes perante o olhar do médico. Evoca o valor das pequenas alegrias no cotidiano ao atendimento de pacientes com covid e como se alimentar delas para seguir. É a voz que nos lembra que o médico tem que aprender a lidar com a morte mas não este tipo de morte que se viu ao longo da pandemia no Brasil.

Dr. Marcelo: evoca a imagem da dedicação que supera o cansaço. Apesar de todas as
dificuldades da pandemia o empenho em superá-la alimenta o exercício médico.

Dra. Beatriz: é uma das vozes que nos conta como foi estar deitada como paciente com covid. A partir dos aprendizados dessa vivência ela desenvolve uma relação mais
horizontal com seus pacientes dividindo com eles sua experiência como paciente de covid além de médica. Ela nos lembra junto à outras vozes sobre a doença da alma que advém do stress ao qual os profissionais de saúde se submeteram durante a pandemia. E resgata como aprendizado o retorno ás raízes da pratica medica: uma boa anamnese e um bom exame clínico.

Dra. Isabel: coloca a pergunta que habitou todos os pacientes na linha de frente: quando será a minha vez de contrair covid? Fala evoca a importância do médico reconhecer quando precisa de ajuda. Com fama de médica “durona”, guardiã dos protocolos de infecção hospitalar, ela nos lembra o significado do abraço no cuidado e como as relações se aquecem diante das ressignificações do cuidado durante o isolamento.

Morgana Masetti